sábado, 27 de março de 2010

O mistério dos '20 a tudo'

Por FERNANDA CÂNCIO

Tiveram a melhor nota a todas as disciplinas do 12.º ano e ganharam um prémio de cinco mil euros. Lígia, Pedro e Teresa, 18 anos, são exemplos de sucesso escolar. Porquê é que não é fácil explicar

Pense lá: se ouvir dizer que houve vários alunos que tiveram 20 a tudo no 12.º ano, imagina-os como? Óculos grossos, macilentos, tímidos e gaguejantes, carregados de acne e complexos, fechados em casa todo o santo dia à frente do computador e enterrados nos livros, só saindo para ir à biblioteca e à escola, sem saber o que é um bar, quanto mais um concerto ou um shot ou, horror, um charro, sem vida social nem vislumbre de romance. Certo? Errado.

A Teresa, por exemplo. "Marrona, eu? Nunca me vi como tal e nunca ninguém me viu como tal. Nunca houve uma festa a que tenha faltado ou um evento... Sou uma pessoa curiosa - gosto muito dos outros, de me envolver, sou divertida, e acho que sim, acho que sou popular." A rapidez das frases, o tom prazenteiro, o cuidado na escolha dos termos certifica o à-vontade da autodescrição. Sim, Teresa é, ou pelo menos parece, uma rapariga alegre, sem semelhanças com o que reconhece ser "o estereótipo do bom aluno". "Havia a ideia de que era preciso estar muito tempo a estudar, não fazer nada senão estudar. Mas acho que ter uma vida completa, social e emocional, é muito importante. Os bons alunos também precisam muito dessa parte."

Habitante de Coruche, frequentou a respectiva escola secundária, onde se envolveu na associação de estudantes, fez teatro, desporto - de natação a aeróbica - ou seja, tudo aquilo a que considerou ter direito. De todas as disciplinas em que lhe foi atribuída nota máxima no 12º ano, escolheu o Português com tema para se candidatar ao prémio Padre António Vieira da Academia de Ciências de Lisboa, escrevendo um texto sobre "a importância da língua e a forma como está relacionada com a vocação". A vocação é, no caso, medicina - o curso que escolheu e cujo primeiro ano experimenta, na Faculdade de Medicina de Lisboa.

Coincidência, foi o mesmo curso, embora noutra faculdade, que Lígia, vencedora do prémio Pedro Nunes, escolheu. Natural de Lamego, a Matemática é o seu território - "Desde miúda, quando estava a estudar outra coisa qualquer estava sempre a pensar que me apetecia era fazer exercícios." Escolheu ser médica tarde ("Confesso, não foi uma daquelas 'vocações' de infância, fui-me apaixonando.") e assume "pensar pouco no futuro". Ao ponto de, quando se lhe pergunta que sonhos tem por realizar (por exemplo, como vai aplicar os cinco mil euros do prémio ), hesitar, rir: "Assim de repente... Não sei. Talvez uma megavolta ao mundo. Ambição agora é tirar o meu curso. E sem pensar muito no tempo que vai levar, senão ficava já maluca. Sou sincera: nunca fui de planear muito o que vou ser."

A viver no Porto com o irmão mais velho, estudante de engenharia física, num apartamento que os pais, uma educadora de infância e um assistente administrativo, compraram para o efeito, Lígia sente a responsabilidade de estar à altura do "voto de confiança" e do "grande investimento" dos pais mas tem saudades deles e e dos amigos, e do ambiente familiar de Lamego e da escola. "Passei de uma cidade pequena em que toda a gente se conhecia para uma tão grande… E entrei numa faculdade em que os professores são mais distantes."

A interactividade e familiaridade são, aliás, dois dos factores que cita como estando na base da sua boa relação com a escola. Que começou muito cedo, no pré-escolar: Lígia frequentou o infantário onde a mãe trabalha. "Nunca pensei na escola como uma pessoa a explicar e as outras a ouvirem. Tive sempre muita sorte com os professores, era tudo muito interactivo. E sinto que isso teve muita importância no chegar onde cheguei. Isso e o apoio emocional dos meus pais, sempre muito presentes."

Para estudar, Lígia gosta de barulho: "Não consigo em silêncio completo. Tenho a mania de estudar à frente da TV. Gosto de séries, vou deitando um olhinho..." Em flagrante contraste com Teresa, outra deslocada (está a viver em Lisboa num apartamento partilhado com dois amigos, um de Farmácia e outra a estudar para técnica de medicina nuclear) que é adepta do sossego radical. "Estudo em silêncio, só eu, os meus livros e os meus pensamentos. Faço-o em pequenos períodos, muito concentrada. Nunca estudo um dia todo, aliás nunca estudo mais de duas horas de cada vez, e não todos os dias. E falo sozinha". Fala sozinha?! "Sim, falo. Para mim tudo é com base na oralidade. Leio, falo, faço esquemas... Falo muito - estudar para mim é isso."

Nem agora, que sente que num semestre dá "tanta matéria como no secundário todo", Teresa estuda todos os dias. "Para se aprender bem não é necessário. Acho as aulas essenciais, e perguntar sempre até perceber. Sem perceber as coisas, não é possível fixá-las." Filha única de uma professora de educação especial e de um funcionário público, nunca estudou com os pais. "A minha mãe, ao princípio, só via o resultado dos trabalhos de casa e se uma conta estivesse mal feita dizia para eu repetir. De resto, deixaram-me criar o meu próprio método, o meu ritmo." E, ao contrario de Lígia, que diz gostar muito de museus mas estar ainda à espera que o irmão a leve a Serralves como prometeu, Teresa usufrui plenamente da cidade grande. "Saio à noite de vez em quando: vou ao Bairro [Alto] e a Santos. E vou imenso ao cinema. É ao lado de casa..."

Nas saídas nocturnas, Teresa já se terá cruzado com o terceiro membro dos magníficos, Pedro que começa logo por certificar: "Não gosto de ser conhecido como 'o bom aluno'. É uma coisa que nos transforma em freaks, nunca me vi como o típico marrão e nunca me privei de nada. Alguns amigos que não participavam do ambiente escolar, quando souberam do prémio ficaram muito surpreendidos, surgiram até várias piadas, do género 'E se aparecessem umas fotos tuas à noite no Bairro?' A ver se a imagem não fica muito tipificada. Aliás, se tivesse de me definir não me definiria como um bom aluno - sou um curioso. Claro que sempre tive preocupação, sim - sempre ia acompanhando as aulas. E nunca estudei na véspera nem nunca usei uma cábula - sempre tentei ter muita integridade."

Uma torrente, o Pedro, prémio Alexandre Herculano com um ensaio sobre História. Discurso cuidado, palavras "difíceis", e a evidência de um pensar vivo, comunicativo, feliz. "Sempre gostei muito da cultura da palavra, sempre cultivei muito isso. É um exercício, desde miúdo que as pessoas ficam surpreendidas. Tenho uma quase obsessão pela originalidade e sempre tentei ter uma linguagem própria. Tento sempre é que as pessoas não pensem que é pretensiosismo - tento gesticular muito e sorrir." Filho de uma professora de Geografia e de um juiz desembargador, residente em Carcavelos, Pedro estudou nos Salesianos de Manique, uma escola privada com protocolo estatal "na qual não se paga" e que considera um exemplo. "Une o melhor de dois mundos. É uma escola de missão, um projecto educativo de muita proximidade." Catequista durante algum tempo, Pedro acabaria por passar por "uma secessão": "Fui percebendo que aquilo em que eu acreditava não fazia diferença em relação aos meus valores e à maneira como vivia. Foi um período muito complicado para mim, porque tentei sempre viver as coisas com muita honestidade." A honestidade que o terá impedido de, presidente da Associação de Estudantes, e claramente com ambições políticas - está a tirar Direito na Universidade Nova de Lisboa e tem como "objectivos mais idílicos o direito internacional, comunitário, a política" - filiar-se num partido: "Achei que podia conspurcar a minha construção de perspectivas."

A construção de perspectivas, pois: se calhar é a consciência disso que faz Pedro, Lígia e Teresa diferentes. Afinal, de comum só têm, além de mães ligadas ao ensino e de pais interessados e encorajadores, vontade de saber. Curiosidade, como diz o Pedro. Sabe-se lá o quê, pensam a Lígia e a Teresa, e ele resume: "Nunca tive uma negativa, mas lembro-me de alguns anos chegar ao fim do ano e pensar 'como é que fiz isto?'"

Fonte: Diário de Notícias

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